A poeirazinha
Estava
assentada, e então lhe puseram um nome, lhe deram endereço,
família, profissão, marido, filhos, enfim; fizeram dela gente. Mas
disso ela nada sabia, apenas deixava tudo tomar seu rumo como uma
partícula ou saco plástico açoitados pelo vento que os conduz
randomicamente na sua liberdade espacial de transito, pois o vento é
livre; não se predetermina, ninguém o predetermina. Assim também
com ela se ocorria, deixava-se levar, pela vida, por alguém, alguma
coisa. Deixava-se. Deixava-se sempre, era sempre conduzida, carregada
por uma maré não influenciada pela lua, pois esta era sua maré,
conduzia-se por um não-sei-que que não podia chamar de vida, nem de
vontade, desejo, anelo ou algo assim. Mas era conduzida. Criara seus
filhos, cuidava do marido, da casa, da comida, do cachorro movida por
um sopro sem nome que não era alma, não era espírito era mais um
não-sei-que. Estava sempre pronta, sempre solícita, disposta,
contida em rua retidão de se deixar, de se deixar lhe porem as
coisas; nome, endereço, roupa, sapato, grampo no cabelo, batom,
pênis enfim; nela se punham coisas pois deixava-se. Arranjaram-lhe
uma vida, um destino, com número de registro e data de nascimento,
pois a tinham ulteriormente a tudo isso posto pra nascer, fora posta
pra nascer, era sempre posta, nunca pôs nada e mesmo quando punha
foi porque fora posta a por. Deram-lhe aniversário, feriados
nacionais, pátria. Lhe puseram numa pátria, no seu documento
constava o nome de uma cidade, pois é, ela de fato tinha endereço
no qual residia, mas morar já diz de outra coisa que para ela não
fora posta, assim como pensar, pois tudo o que pensava lhe era posto
na cabeça como todo o resto, como quando o seu marido a penetrava.
Ela era
daquelas pessoas lançadas, não como pessoas que se lançam às
coisas, mas pessoas lançadas. Estava sendo e não era, vivia sua
vidinha de projétil arremessado, míssil teleguiado já é demais,
afinal ela era só aquilozinho que se deixava por-se. Saco plastico
flanante, é muito. Era poeirazinha daquelas que se acumulam no móvel
de casa por falta de zelo na qual as crianças se divertem escrevendo
seus nomes com os dedos. Seu destino parecia ser escrito assim, por
brincadeira de pontas de dedos na poeirazinha que era. Ai quando não
se quer a poeirazinha por perto, ou a se varre pra debaixo do tapete
ou a se espanta com um espanador que a transporta e faz pousar em
outra superfície que se configura em uma especie de molde ao qual
ela se deixa assentar novamente e devotamente cumprindo seu papel de
poeirazinha. Se quiser ser mais avassalador pode-se usar um
aspirador, sugando-a por completo a lançando numa espécie de
masmorra ou limbo (como queira) lá dentro do aspirador, lançada
então neste hermetismo ela se contenta reclusa com sua condição de
pó que é, de detrito indesejável e espera o compartimento se
encher até que lhe esvaziem e a libertem numa lata de lixo, num
lixão,num aterro. Se estiver com a sorte de passar um vento no
momento do despojo ela pode pairar, livre sem destino, pois já não
tem mais endereço, nome, marido, casa, filhos, cachorro,
aniversário, batom na boca, sapato no pé, pênis na vagina, voltou
a ser a poeirazinha que sempre fora e nunca soubera, tudo isso apenas
fora-lhe prescrito enquanto estava assentada, descansando em
superfície tomada como existência ditada por dedos a passar seu
tempo escrevendo na poeirazinha, ai foi pega de surpresa sendo, vejam
só! Tomando existência! Logo ela a poeirazinha.... É de se rir.
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