domingo, 15 de julho de 2012

Poeirazinha



A poeirazinha


Estava assentada, e então lhe puseram um nome, lhe deram endereço, família, profissão, marido, filhos, enfim; fizeram dela gente. Mas disso ela nada sabia, apenas deixava tudo tomar seu rumo como uma partícula ou saco plástico açoitados pelo vento que os conduz randomicamente na sua liberdade espacial de transito, pois o vento é livre; não se predetermina, ninguém o predetermina. Assim também com ela se ocorria, deixava-se levar, pela vida, por alguém, alguma coisa. Deixava-se. Deixava-se sempre, era sempre conduzida, carregada por uma maré não influenciada pela lua, pois esta era sua maré, conduzia-se por um não-sei-que que não podia chamar de vida, nem de vontade, desejo, anelo ou algo assim. Mas era conduzida. Criara seus filhos, cuidava do marido, da casa, da comida, do cachorro movida por um sopro sem nome que não era alma, não era espírito era mais um não-sei-que. Estava sempre pronta, sempre solícita, disposta, contida em rua retidão de se deixar, de se deixar lhe porem as coisas; nome, endereço, roupa, sapato, grampo no cabelo, batom, pênis enfim; nela se punham coisas pois deixava-se. Arranjaram-lhe uma vida, um destino, com número de registro e data de nascimento, pois a tinham ulteriormente a tudo isso posto pra nascer, fora posta pra nascer, era sempre posta, nunca pôs nada e mesmo quando punha foi porque fora posta a por. Deram-lhe aniversário, feriados nacionais, pátria. Lhe puseram numa pátria, no seu documento constava o nome de uma cidade, pois é, ela de fato tinha endereço no qual residia, mas morar já diz de outra coisa que para ela não fora posta, assim como pensar, pois tudo o que pensava lhe era posto na cabeça como todo o resto, como quando o seu marido a penetrava.
Ela era daquelas pessoas lançadas, não como pessoas que se lançam às coisas, mas pessoas lançadas. Estava sendo e não era, vivia sua vidinha de projétil arremessado, míssil teleguiado já é demais, afinal ela era só aquilozinho que se deixava por-se. Saco plastico flanante, é muito. Era poeirazinha daquelas que se acumulam no móvel de casa por falta de zelo na qual as crianças se divertem escrevendo seus nomes com os dedos. Seu destino parecia ser escrito assim, por brincadeira de pontas de dedos na poeirazinha que era. Ai quando não se quer a poeirazinha por perto, ou a se varre pra debaixo do tapete ou a se espanta com um espanador que a transporta e faz pousar em outra superfície que se configura em uma especie de molde ao qual ela se deixa assentar novamente e devotamente cumprindo seu papel de poeirazinha. Se quiser ser mais avassalador pode-se usar um aspirador, sugando-a por completo a lançando numa espécie de masmorra ou limbo (como queira) lá dentro do aspirador, lançada então neste hermetismo ela se contenta reclusa com sua condição de pó que é, de detrito indesejável e espera o compartimento se encher até que lhe esvaziem e a libertem numa lata de lixo, num lixão,num aterro. Se estiver com a sorte de passar um vento no momento do despojo ela pode pairar, livre sem destino, pois já não tem mais endereço, nome, marido, casa, filhos, cachorro, aniversário, batom na boca, sapato no pé, pênis na vagina, voltou a ser a poeirazinha que sempre fora e nunca soubera, tudo isso apenas fora-lhe prescrito enquanto estava assentada, descansando em superfície tomada como existência ditada por dedos a passar seu tempo escrevendo na poeirazinha, ai foi pega de surpresa sendo, vejam só! Tomando existência! Logo ela a poeirazinha.... É de se rir.

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