quarta-feira, 1 de maio de 2013

A Fuga


Fugia de si. Numa tentativa febricitante de encarar fora do espelho o que na sua percepção se dava sempre sob o crivo insólito que perfaz toda experiência pejada de estranhamento que dá-se no abrir de toda identidade: o deparar-se com o tu de si mesmo. O outro que é inferno e fúria abissal feito cratera aberta que tudo absorve pra depois regurgitar dando vazão a uma torrente desgovernada  de tudo que se diz, de onde deslizam todas as palavras que se possam dizer  daquilo que viceja apesar de estanciar-se numa espécie de limbo alagoso repleto de limo que escorregadia-se  não servindo de regaço nem aconchego pra quem nele espera seu juízo, juízo de  réu, res.  Reificada. Res alter, por haver cometido o  crime  hediondo e imperdoável de ser,  inocentemente ser e ter irrompido na vida raiando ignota de tudo, feito vertigem que se transmuta em traço, traço maldito traçado em cada um que nela, a vida, ousa e nasce.
  Foge-se incauto, açodado, com outrossims em forma de pedras a crepitar por debaixo dos pés num atrito constante que ressoa e deliberadamente diz .Que a vida é pedra. E agora fricciona-se avassaladoramente contra tudo que em nela grita ensandecidamente num berrogrogue a expelir em fragorosas cadências incendiadas por toda autoridade da potência: OUTRO! OOOUUTRO!
 E o outro que de si sai, caminhando a sua frente a lhe dar as costas, indo ser si mesmo. Fora do si que de si era. Esse outro, não grita, não berra, não clama. Pois já é o próprio grito transmutado em alteridade cuspida pra fora, que não podendo ser outra dentro de si, foi se ser lá fora, do lado de fora, a mesma, mas fora de si. Extrapolando-se.
Num si de mesmos outros.
Em outros de mesmo si.

Fome de ser, fleuma voluntário. Livrando-se da coima de dizer:              EU!

Sendo apenas


OUTRO


quarta-feira, 5 de setembro de 2012

PUREZA


  O sentimento nem sempre vem puro, entende-se por isso que tudo deve possuir um estado natural, original e genuíno de como quando as coisas começam a ser e ainda não se misturaram a outras coisas que estão a começar ou já haviam começado a ser. E essa pureza, renitentemente clamada numa súplica ad eternum pela humanidade; nada mais é do que um percalço que muito mais do que um óbice regular da vida, torna se ponta aguda de perfuração lancinante , toque fino de candência de dor que por se transmitir por canalículo de espessura extremamente mínima se condensa, concentrando em si toda a dor que uma dor pode doer, essa concentração revela sua pureza, de dor pura que é por não misturar-se a mais nada e ser composta daquilo que originariamente é, apenas dor. Não é cansaço, não é derrota, não é espera eterna, não é desterro, não é desilusão, não é amor barato não correspondido, não é faca, não é ferro, não é fogo queimando, não é mentira quando se acreditava ser verdade, não é indiferença, não é tristeza, não é desalento, não é ferida, não é decepção, não é a morte, não é doença, não é ferimento de bala, não é uma cacetada na cabeça, não é corte, não é atropelamento, não é pedrada, não é dente podre, não é traição, não é surra de marido, não é a vida dizendo não, não é. E a mais pura dor, cristalina em sua pureza de coisa pura passada em crivo a separar nela aquilo que de sua essência não fazia parte, aquilo incapaz de acolher sua espessura de dor, em si, límpida, cristalina sem motivos, substancia em si, fino extrato extra virgem da mais pura dor.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

DISCRONIA


Nascera no futuro, no porvir da massa de segundos, horas e minutos que cortam cronologicamente o que se chama de tempo, nascera no tempo que ainda não era; nos segundos ainda não cortados pela lança afiada dos relógios e encarcerados na prisão hebdomadária dos dias da semana, da sequencia dos meses e do suceder dos anos. Já era, mas ainda não sendo. Era o porvir do seu ainda não existir que somente existia na sucessão do que seria se fosse, sendo que já era, mas somente na sucessão do que ainda não era.
Inventava-se então como consequência de um passado que nunca houve, era o produto concreto do que nunca foi mas que ao mesmo tempo era no que seria o resultado de sua sequência posta sob a forja do tempo.
Amputara o tempo, cortou fora o que dele não lhe interessava. Subtraiu etapas. Destas só lhe interessou o futuro e decidiu que seu nascimento somente se daria neste. Resolveu não habitar o presente e o passado retalhou e engoliu paulatinamente, mas este tinha gosto de ar, de sopro vazio posto que nele nada havia sido inscrito.

Escolheu ser o que é do que nunca foi, o sendo do que nunca houvera e o que poderia ter sido do que nunca ocorreu.

E assim revolucionava, pois as revoluções amam aqueles que ainda não existem, já existindo.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

......


                                                                   

Ah, não sei nada! Estou repleto de insipiência. Repleto de tudo aquilo que não preenche espaço algum, que nada diz por nada ter a dizer por nada saber. Estou repleto daquela falta que inunda a mente de todos os imbecis, doutores da falta de tato, de gosto, de palato que pronuncie algo, sou daqueles que querem o mar; infindável ir e vir de ondas espasmódicas a se espraiar nas vagas do que se chama de pensamento. Tenho o tino perdido, embiocado não sei onde que nunca mais o encontrei, e sabe se lá em que biboca ai dentro ele se enfiou. Perdido no que poderia ser uma seara, daquelas que são feitas de ideias de plantas férteis, que resplandecem verdejantes numa espécie de crepúsculo existencial com folhas verdes a farfalhar se despedindo do dia. Emaranhado em borbotoes de palavras que se misturam erraticamente por toda parte do que não se sabe o nome pois estas não se oferecerem para forma dar a este nome que não se diz, este impulso anonimo que ferve cheio de verve e flui que nem ressaca oceânica de empuxos e repuxos a querer transbordar os rincões daquilo que se chama de eu.

Ah, é um não-sei-que, é um não saber que se sabe que não se sabe, é um indizível percuciente, inenarrável que se destampa a ribombar em um fragor ensurdecedor que não se faz ouvir porque não é som , de algo que diz por não ter dito, é esse cheio vazio a retumbar em todos os recônditos, em todos os poros do que se é pra depois vir a ser aquilo que a palavra chama de nada e a gente chama de..............

terça-feira, 24 de julho de 2012

ERRO DATILOGRÁFICO


                                                    
Trabalhava em uma repartição, todos os dias sentava-se a postos a redigir os mais variados documentos; relatórios, protocolos, memorandos, ofícios, enfim, aquela parafernália que compõe toda confluência burocrática característica desses ambientes. Um único detalhe o destacava do restante  fazendo que fosse visto com um certo estranhamento por parte dos seus companheiros de profissão: ao invés do computador ele se utilizava de uma máquina de escrever.

O barulho intenso e constante provocado pelo bater das teclas no papel repercutia por todo o ambiente causando irritação em todos os presentes que sempre lhe indagavam o porquê da insistência no uso de instrumento tão arcaico, barulhento e muito pouco pratico aos quais ele redarguia “ é mais proveitoso”.

O curioso é que a cada erro cometido, ao invés fazer alguma emenda, voltar a datilografar em outra folha, ou encobrir o erro com líquido corretivo; ele arrancava a pequena letrinha inconveniente que aparecera no lugar errado e colocava em um pequeno caneco que ficava a seu lado. Assim fazia toda vez que algo era digitado de maneira indevida; erros de ortografia, um plural indevido, uma crase mal colocada, todos iam parar no caneco o qual no fim do dia terminava cheio.

Ao final do dia repetia um curioso ritual que deixava todos curiosos a olharem meso que de soslaio para sua execução: pegava a caneca repleta dos pedacinhos de papel produto de seus erros, colocava um pouco de água, misturava um pouco e tomava tudo de uma vez só e após aquele lauto hausto, prorrompia proverbialmente:
“ Que erros deliciosos!.” E ia-se.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

OS SAPATOS



Deparou-se na vitrine com o sapato mais encantador que poderia ter visto na vida. Ficou fascinada, hipnotizada pelo brilho das pequenas pedrinhas brilhantes que adornavam os contornos daquele sapato de bico fino muito alto e de um vermelho candente.
“Preciso tê-los!” . Pensou ela decidida.
__Lamento senhora, infelizmente este único par restante na loja é de uma numeração  menor do que a que a sra calça.
Disse o vendedor após tentar enfiar em seus pés os tão desejados sapatos. Mesmo que antes este tenha perguntado o seu número e informado que não dispunha da numeração referida e esta numa atitude obsedante insistiu para que os experimentasse.

__Não tem problema! Retrucou com tenacidade.
__Ficarei com eles mesmo assim! Concluiu.

E levou os sapatos.

Ao chegar em casa, correu para a cozinha pegou a faca mais afiada que tinha e a custa de muita dor e esforço conseguiu cortar os cinco dedos e cada pé e ligeiramente calçou os sapatos.

__Ah...Agora sim! Eu não disse que eles iam me servir? Nossa, cabem como luvas em meus pés.
E contemplava-se no espelho, com aquele belo par de sapatos vermelho incandesceste ornado com pedrinhas brilhantes, enquanto que pelos cortes nos dedos o sangue jorrava incessantemente. Mas ela não se importava, afinal de contas se tratavam de sapatos vermelhos e ninguém iria notar o vermelho do sangue.

domingo, 22 de julho de 2012

O TEMPO


                                                                    

Ao se olhar no espelho sentiu o toque de algo que se passa ao notar as linhas em seu rosto, como sulcos que se fundem no solo pelo cravar constante de pás a marcá-lo com uma tenacidade e obstinação de quem veio para executar seu trabalho de forma resoluta e objetiva. Esse algo que passa não se diz diretamente, se pronuncia através dessas linhas que ao invés de escritas com terna frugalidade, são fincadas a marretadas na superfície onde ele as registra. O tempo é ácido, é férreo, impondo sua onipresença repleta de segundos a rasgar a eternidade com sua inexorabilidade compassada e isócrona. É algoz cronológico da existência, clamando tudo o que é seu, tudo que por ele passa sem nunca escapar-lo. Ele é o que sempre resta, pois é o que nunca foi.