quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Mitágoras e o "riscar".

 Mitágoras estava caminhando no parque quando de repente sentiu um arranhão em suas costas; como se uma espécie de objeto pontiagudo  as tivesse riscando. Continuou a caminhar.
 Alguém o cumprimentou com um " Bom dia". E ao responder o " bom dia" com outro " bom dia" teve a sensação de que sua língua fora arranhada por uma agulha finíssima deixando um gostinho azedo na boca  como quando a língua se machuca.
 Esses arranhões deixavam dores ardidas e pungentes. O arranhão, uma espécie de "risco" em suas costas ardia, assim como o da sua língua também. Mas sangue não havia, havia somente ardor.
 Se sentia estranho, sem saber o que era aquilo e que significado poderia ter. Desespero não era a palavra. Estranhamento sim. Abismamento também.
 Ardia. Então ele começou a correr; a situação piorou. Sentiu mais arranhões o atingirem, agora um em cada batata da perna, nos calcanhares nos dedos dos pés, nas coxas, suas pernas completamente arranhadas. Diminuiu o rítmo e a intensidade  e o ardor diminuiram. Arfou e agulhas rasgaram seus pulmões.
Não dava para continuar, parou de correr. Examinou suas pernas, não havia arranhão algum, mas a dor era lancinante. Examinou a sola dos pés, a dor do corte era profunda, mas não havia corte.
 Desespero. Agora sim esta era a palavra. O rítmo da sua respiração aumentou, e seus pulmões ardiam. Suor começou a escorrer pela sua testa e cada gota de suor era como um espinho que rasgava seu rosto ao descer por ele.
  A cada parte do seu corpo a qual ele dirigia seu pensamento a sensação cortante era intensa e insuportável, seu corpo inteiro parecia estar sendo arranhado, cortado, circunscrito em uma espécie de região limítrofe que se delimitava através da dor.
  Com muito esforço conseguiu caminhar até em casa, mesmo que com a cada cada passo dado suas pernas sofressem arranhões os quais ele realmente sentia mas não os via.
  Entrou em casa, e com rapidez bateu a porta. Mas algo diferente aconteceu quando ele olhou para a porta e nela fixou o seu olhar; o olhar em cada detalhe em cada traço da madeira, nas imperfeições, nos contornos da maçaneta e ao fazer isso começou a ouvir sons de pequenos riscos sendo feitos na porta que se intensificavam e ficavam  cada vez mais altos a medida que ele fixava seu olhar nestes detalhes.
 E começou a olhar ao seu redor. Olhar as paredes, a mesa, as cadeiras, as rachaduras nas paredes, o carcomido do tampo da mesa, as pequenas falhas nos talheres, a fenda no telhado que deixava escapar a luz do sol e a água da chuva e tudo isso tomou proporções gigantescas pois o barulho de risco rabisco se intensificou em sons estridentes e ensurdecedores.
  Ao se olhar no espelho sentiu  como se todos os contornos do seu rosto estivessem sendo talhados em suas extremidades por algo pontiagudo que de certa forma ao mesmo tempo que parecia o deformar estava lhe dando vida.
 Tudo ardia, tudo rangia, rachava, rasgava, se cortava. Nada escapava, tudo o que pudesse ser percebido pelo seu olhar e apreendido por sua mente sofria o "rasgo", o "riscado" do seu pensamento.
 E Mitágoras percebeu que o único lugar que o risco não riscava e que não ardia; era sua mente. Era como se esta fosse imune a ele, permanecendo intacta.
 Mas por quê?
 Parou e pensou, pensou em meio a todo ardor e ranhuras dos quais era vitimado. E percebeu que sua mente não era riscada. POIS ERA ELA QUEM RISCAVA, era ela quem provocava os arranhões e consequentemente o ardor que tomava conta de todo o seu ser e do ambiente ao seu redor pois tudo partia dela.
 E se perguntou novamente "mas com o que ela riscava?" " que instrumento ela utilizava para riscar e arranhar seu ser e os objetos ao seu redor?" "qual seu objeto cortante, que talha, que circunscreve?".
 Ficou parado, imóvel, pensando em qual seria esse objeto. E de repente ficou pasmo, atônito, boquiaberto. Se sentiu um idiota; era só olhar para a sua mão e lá estava resposta: ela segurava um lápis. E com este ela escrevia freneticamente.
 Se dera conta de que todo esse tempo ele não havia saído do lugar, tinha estado o tempo todo sentado  à mesa com um lápis na mão escrevendo no papel tudo o que  se passava por sua cabeça, o conteúdo o qual a partir do momento que era lançado no papel em forma de escrita, risco, rabisco o fazia ter a nítida percepção de experiência real  daquilo de que da ponta do lápis saía.
 Na verdade, Mitágoras escrevia a si mesmo. se dizia, se criava, se inventava. Era contador de si mesmo, escritor de seu destino.
  A ponta do lápis era o condão pelo qual tudo acontecia e se fazia real, o que era escrito era vivenciado e escrito ao mesmo tempo. Era senhor de si sem sabê-lo; autoridade do próprio destino sem consciência desta. 
 Agente e paciente de todo o seu ser. Mitágoras era o próprio lápis.